Como enfrentar o desafio da dengue

Talvez algum dia nos livremos definitivamente do coronavírus da Covid-19. Talvez! Isso seria graças à gigantesca engenharia farmacêutica construída em velocidade sem precedentes desde o surgimento da pandemia. Para esse esforço pesaram decisivamente o contágio avassalador do SARS-Cov2 e a consequente ausência de fronteiras geográficas ou climáticas em sua disseminação. A vida em todo o planeta estava ameaçada. Empresarialmente, isso traduziu-se em uma demanda comercial por vacinas jamais vista, gerando uma verdadeira “corrida do ouro” entre os grandes laboratórios.

Hoje, presenciamos o sucesso dessa vacinação, ainda que não inteiramente consolidado, e constatamos que ele se deve a um fator-chave, que era imprevisível no início das pesquisas com os imunizantes: a mutação relativamente lenta do vírus. Fosse como a AIDS, com mutações bem mais numerosas, não estaríamos com a mesma perspectiva otimista de agora, não haveria como o lento processo de vacinação dar conta de variantes bem mais frequentes. É o que torna muito difícil a produção de vacinas para a AIDS. Além disso, o vírus da AIDS não tem o mesmo poder de contágio do novo coronavírus, o que de certa forma relativiza a urgência por uma vacina. Nesse caso, a prevenção só é possível através de cuidados higiênicos, pessoais e médico-hospitalares. Sem isso, a AIDS seguirá existindo indefinidamente.

Outras doenças também seguem existindo, entre elas a dengue. Pergunta-se o porquê de não termos campanhas de vacinação para esse mal endêmico, afinal trata-se de um vírus com poucas mutações, existem somente 4 tipos, cada um com subvariantes.

Vacinas até existem, resultado de mais de duas décadas de pesquisas mas, apesar de avanços recentes, ainda paira incerteza sobre eficácia e efeitos colaterais. Empresarialmente, pesa o fato de que a dengue não tem contágio a não ser pela picada do Aedes aegypti, um mosquito que existe somente em algumas regiões do planeta, portanto longe de gerar uma demanda por vacinas como no caso da Covid-19.

Outro complicador é o fato de que o Aedes aegypti não transmite apenas dengue mas também outras doenças como malária, zica, e chicungunha. Uma vacina que funcione apenas com uma das doenças e não com as outras certamente não é ideal, o que reforça a prioridade de combate ao mosquito que as transmite.

Acontece que o país em que vivemos sofre imensamente com a recorrência dessas doenças, então qualquer vacina já ajudaria, por limitada que seja. Como agravante, a presença do Aedes não se restringe mais a regiões tradicionais, está se alastrando. Tenho acompanhado com preocupação a ocorrência recente de surtos na minha cidade natal, Montenegro RS, bem como Porto Alegre e outras localidades onde a dengue praticamente não existia.

Espera-se que as autoridades sanitárias estejam se empenhando ao máximo para combater a doença, valendo-se das informações científicas disponíveis e também da experiência das regiões que já convivem habitualmente com esse problema há décadas.

É o caso do Rio de Janeiro, estado e capital, onde o clima predominantemente quente oferece condições muito favoráveis à propagação do mosquito Aedes aegypti. Em consequência, a região sofre com epidemias todo ano, especialmente entre os meses de dezembro e abril.

A partir de maio, a queda de temperatura proporciona uma trégua a cariocas e fluminenses, mas não é garantia contra a ocorrência de casos. Chama atenção, de forma ainda mais preocupante, que a dengue esteja se manifestando em regiões onde as temperaturas são inferiores às do litoral sudeste brasileiro. É um fator novo a ser considerado, como demonstram os surtos no sul do país.

No Rio de Janeiro, o sofrimento com surtos mais críticos ocorridos há já alguns anos serviu como aprendizado e levou as autoridades a adotarem uma série de medidas de combate à dengue. Ruas passaram a ser percorridas com “fumacê” (pulverização com inseticida) e alguns bairros receberam ação ambiental de reprodução de variantes estéreis do Aedes aegypti.

Porém, logo ficou claro que apenas medidas do poder público não bastavam, era como cobrir o sol com peneira. O planejamento precisava evidentemente da ajuda da população. Iniciou-se então uma campanha de conscientização sobre medidas domésticas de prevenção, usando-se linguagem comum, para que as pessoas tomassem conhecimento prático dos detalhes importantes.

É preciso que as pessoas entendam que se deve evitar qualquer tipo de formação de água parada, não deixar pneus expostos ao tempo e sacrificar algumas plantas cujas anatomias retenham água: o “copo-de-leite” por exemplo. Assim como pneus, também estas plantas precisam ficar protegidas da chuva, o mesmo valendo para qualquer tipo de objeto que possa reter água.

Uma situação muito problemática é das piscinas particulares, que precisam receber tratamento com produto químico para evitar que o mosquito delas se utilize. Às vezes ocorre desleixo por parte do dono, mas o pior é quando a piscina, ou algum tanque, bacia e outros recipientes de água estão em uma residência não-habitada. Nesse caso, não conseguindo localizar o proprietário, as autoridades se vêem obrigadas a forçar entrada no imóvel para adotar as medidas necessárias.

Técnicos da Fiocruz me observaram a facilidade com que o Aedes aegypti se prolifera após uma chuva prolongada, e até mesmo durante a chuva. Ressaltaram também que este mosquito se reproduz em água limpa, o que me fez deduzir que o Rio de Janeiro tem sido grande exportador de dengue, via rodoviária : caminhões de carga pernoitam, a chuva forma poças d’água sobre suas lonas, e aí vem o Aedes depositar seus ovos, que partem país afora. Acho que caberia alguma orientação aos caminhoneiros, e alguma fiscalização: tarefa para o poder público.

Não apenas isso. Entrevistado pelo repórter Ari Peixoto para um telejornal da Globo, observei a ele a grande frequência de empoçamentos de água nas ruas, consequência de vazamento de tubulações. São situações crônicas que exigem medidas rápidas tanto da população como das autoridades, para que se notifique imediatamente e para que uma equipe de manutenção se dirija com rapidez ao local. Na prática, porém, isso nem sempre acontece e poças ficam dias à feição para que o mosquito nelas se prolifere.

Assim, no Brasil, seguimos diante desse grande e incessante desafio.

Augusto Licks é jornalista e músico

Artigo publicado originalmente por Milton Jung em https://miltonjung.com.br/2022/06/03/como-enfrentar-o-desafio-da-dengue/

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Plebiscito em outubro, acontecerá?

Não me refiro propriamente a um referendo. É certo que às vezes impasses institucionais impõem a necessidade de uma consulta popular, e custa caro aos cofres públicos. Para esses casos talvez devêssemos copiar a solução usada nos EUA: embutir nas eleições os “sims” ou “nãos” para questões específicas, praticamente eliminando os custos extras.

O plebiscito a que me refiro é o significado que está assumindo a nossa eleição presidencial. Caráter simbólico ou mais do que isso, me diga você, leitor ou leitora, após refletir um pouco. O título desse artigo também contém a pergunta: acontecerá ? Afinal, surpresas acontecem. É como esperar por uma versão atualizada de um equipamento de trabalho e, em vez disso, o fabricante lançar um novo produto similar, só que diferente e bem mais caro. Vistam-se as carapuças.

Há pouco mais de um ano, escrevi que Lula e Bolsonaro teriam concorrência neste 2022 pois um manifesto lançado por lideranças de outras correntes partidárias propunha a definição de uma candidatura única para a chamada terceira via. Hoje parece claro que, salvo algum fato extraordinário, não haverá mesmo concorrência para os dois favoritos. Perdeu muito tempo a terceira via.

Em outro artigo, analisei a guerra na Ucrânia, procurando examinar friamente as suas causas, deixando momentaneamente de fora a comoção natural diante das atrocidades e horrores daquele conflito que agora parece não ter fim. Tecnicamente falando, ficou claro que a invasão ordenada por Vladimir Putin foi um movimento de antecipação, por a Ucrânia ainda não ter ingressado formalmente na OTAN. Se já tivesse se consumado, Putin teria que se conformar e não invadiria, pois estaria automaticamente e diretamente sob a mira do poderio bélico dos EUA e seus aliados militares. Do ponto de vista estritamente estratégico, Ucrânia e OTAN “comeram bola”, demoraram muito a se unir e disso aproveitou-se Putin.

De forma semelhante, a terceira via demorou demais a se decidir, e o tal manifesto caducou. Era uma carta de intenções, boa até. Conhecemos, porém, o dito popular “de boas intenções o inferno está cheio”.

Naquela época, havia 35 % do eleitorado sem identificação com Bolsonaro, que tinha 25% das intenções de voto, ou Lula, que tinha 40%. Existia, portanto, margem suficiente para que uma terceira candidatura ameaçasse tirar um dos dois do segundo turno, provavelmente o atual presidente. Com adesão de eleitores bolsonaristas no segundo turno, o candidato da terceira via também poderia ter sérias possibilidades de derrotar o petista. Só que …

O ano que se seguiu desfilou personalismos e aspirações individuais, e nada de união a não ser arremedos parciais que não empolgaram. Até políticos com alguma qualidade se vêem hoje relegados ao divisionismo de “nano” candidaturas que a essa altura as pesquisas sentenciam como meramente protocolares. Visam somente a marcar posição e ganhar publicidade para pleitos futuros, regionais ao menos, ou quem sabe aspirar a convites para cargos no governo dos vitoriosos.

Em campanhas eleitorais nunca se deve descartar a possibilidade de fatos e situações de última hora, capazes de trazer implicações e até reversão de tendências. Como já disse antes, é um jogo de convencimento publicitário e certamente os respectivos marqueteiros das candidaturas já elaboram planos para desestabilizar concorrentes, buscam produzir alguma “bala de prata”, através de uma revelação que atinja a confiança que determinado candidato almeja conquistar além de seu próprio eleitorado.

Por enquanto, porém, neste mês de maio o que se confirma é que a terceira via carece de poder de convencimento, não tem apelo popular. Ela pode até produzir as suas próprias balas de prata ferindo outras candidaturas, mas não em efeito suficiente para capitalizar muitos votos para seu lado. A terceira via segue padecendo da crise de identidade que o surgimento do bolsonarismo lhe impôs ao apoderar-se de sua bandeira eleitoral antipetista. Assim, ela dilui-se diante do que, na disputa presidencial, parece se consolidar como um bipartidarismo “de facto”.

Para o segundo turno, se houver, o que se coloca como questão é: o quanto de adesão Lula e Bolsonaro conseguirão contabilizar, respectivamente, de eleitores que os rejeitarem no primeiro turno? Qual irá prevalecer: o antipetismo ou o antibolsonarismo?

Frustram-se os eleitores e eleitoras que esperavam ver uma terceira via no segundo turno, restando-lhes aderir ao que avaliarem como voto útil, ao que considerarem como “menos ruim”. A vertente centro-esquerda da terceira via (Ciro Gomes/PDT) certamente migrará para Lula, caso haja segundo turno. A vertente centro-direita provavelmente se alinhará a Bolsonaro, que parece já ter embolsado os votos do desistente Sérgio Moro. À vertente “centro-centro” caberá descer do muro e se posicionar, se entender e aceitar o caráter plebiscitário que a eleição está adquirindo. Se optar por voto inválido, estará se omitindo.

Entra aí o significado de plebiscito. Descontando-se votos habituais de quem não entende e não quer saber de política, os eleitores órfãos de uma terceira via deverão pesar as consequências da escolha que irão fazer, mesmo que a contragosto. Deveriam ao menos considerar o que é pior, ou o que é menos ruim, para seus próprios interesses pessoais, corporativos, senão para o próprio país. Deveriam se perguntar, por exemplo, se lhes é importante ou não que continue o sistema de democracia representativa, com eleições livres regidas pela Constituição, ou se isso não lhes é importante. Se for, logicamente deveriam avaliar se alguma das candidaturas oferece risco à manutenção do atual sistema. Sim, porque se houver ameaça ela significa que, no futuro, terceiras vias talvez nem chances tenham mais.

A reforçar o caráter de plebiscito, não há como ignorar a farta amostragem ao longo do atual governo, entre declarações, atos, ameaças e provocações a instituições. Você leitora ou leitor, acha que apesar destes fatos o governo está comprometido com o regime democrático? Ou acha que não está? Sejam quais forem as verdadeiras intenções, elas se beneficiariam de legitimidade popular na hipótese de reeleição.

Assim, se Bolsonaro reeleito colocar em prática ameaças que tem feito, será porque assim terá escolhido a maioria do eleitorado, mesmo que a contragosto de sua quase metade. Se, por outro lado, o vitorioso for Lula, será porque a maioria dos eleitores, mesmo que a contragosto de sua quase metade, terá preferido de forma geral evitar possíveis ameaças ao atual regime. Alguns falam em polarização entre extremos nesta eleição, mas isso é inexato e manipulativo. A polarização é entre duas candidaturas, mas factualmente apenas uma delas revela feição extrema.

Essa é a decisão que depreende-se da eleição de 2022, mais do que a preferência ou rejeição por um ou outro candidato. É uma decisão que cabe aos milhões de brasileiros e brasileiras de uma faixa intermediária do eleitorado onde se incluem os que desgostam de ambos favoritos, os que sequer têm preferência, e os que sequer dão importância à política, que taxam de coisa ruim.

Parafraseando o brilhante thriller norte-americano “The Usual Suspects”, eu diria que uma das proezas do diabo foi também convencer muitos de que política é coisa ruim, como se inevitável e necessária não fosse.

A verdade é que nos falta educação política. Fundamentos de política e administração deveriam constituir disciplina obrigatória em currículos escolares, mas isso não existe. Em consequência, temos uma massa de gente, muitos com formação universitária até, politicamente analfabetos. E assim vivemos cercados de crendices, de quem acha que entende política quando tudo o que diz ou faz é agir como alguém de torcida organizada de futebol, gritando ladainhas religiosas em exaltação a seus respectivos ídolos e atacando adversários, às vezes com violência de hooligans.

Existem os que, conscientemente ou não, repetem jargões que confundem outras pessoas; como, por exemplo, de direita e esquerda serem “conceitos ultrapassados”. Ora, existem conceitos e para eles existem nomenclaturas, é preciso dar nomes aos bois. Esquerda e direita são nomenclaturas, apelidos, para nos referirmos a seus respectivos conceitos. Se não quisermos usá-los, OK, então que usemos outros apelidos, mas é preciso estabelecer alguma identidade, do contrário do que estaríamos falando ?

Simplificando, a oposição entre direita e esquerda pode abranger até aspectos de mudança versus conservadorismo e também valores morais. No entanto, entendo que sua caracterização fundamental é a de contrapor liberdade individual a compromisso social e, na prática, de defender que o estado priorize economicamente uma das duas coisas. A estas, qual o problema de referir-se como “direita” e “esquerda” ? A quem interessa ofuscar essa distinção ?

Claro que … quem é que quer mesmo debater hoje em dia? É algo ainda possível? Coisa de velho? Por que alguém deveria se importar com isso? Entra aí o conflito entre conhecimento e desconhecimento, cada um com respectivas causas, explicações, e implicações, tema muito amplo para embutir neste presente artigo.

Mas voltando à eleição plebiscitária … ela acontecerá ?

Existe preocupação com a segurança do pleito. Alguns analistas políticos já falam constantemente no risco de golpe (de Estado), outros preferem não pronunciar a expressão, temerosos de que sua publicidade ajude a incutir entre as pessoas a noção de que não seria algo anormal. É tipo o factóide que se dissemina popularmente contra o poder judiciário, na tentativa de acostumar as pessoas a aceitarem que as constantes intimidações ao STF e TSE sejam coisas normais. Você, leitor ou leitora, acha que são? Ou acha que não são? Somando-se a isso, declarações de algumas lideranças militares soam mais intimidantes do que tranquilizadoras.

Se Bolsonaro vencer, teria Lula como não aceitar? E se Lula vencer, iria Bolsonaro aceitar? Que força iria impedi-lo de alegar fraude nas urnas eletrônicas, como não cansa de apregoar, e de intentar um ato de força à semelhança do que Donald Trump não conseguiu nos EUA? Iriam as Forças Armadas se contrapor a seu Comandante-em-Chefe traindo obediência hierárquica militar para defender a Constituição da República Federativa do Brasil?

Nessa hora é de se perguntar o que vale mais: Constituição ou Forças Armadas? Estas últimas se bastam, não precisam de nenhuma garantia, já a primeira …

O vice-presidente Hamilton Mourão, de palavras geralmente medidas, salvo alguns escorregões, já declarou com todas as letras que nosso país “não é república das bananas”. É de se perguntar qual garantia disso ele oferece. Golpes militares típicos como na Bolívia dos anos 70 estão fora de moda, mas existem modalidades modernas de autocracias disfarçadas de democracia, como a própria Rússia de Putin. Além do mais, o general Mourão é carta fora do baralho de Bolsonaro, pelo sim ou pelo não ele mantém-se no cargo, talvez por vontade pessoal e de simpatizantes que não concordam com todas atitudes do presidente, e também porque, por lei, o presidente não tem poder para demití-lo.

No judiciário e legislativo, sempre ouviremos expressões protocolares e repetitivas garantindo a “solidez de nossas instituições democráticas”. Hoje em dia isso acontece mais no legislativo, pois recentes falas de ministros do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral são reveladoras de que, sim, existe preocupação. Coincidência ou não, funcionários de segurança do STF têm feito cursos junto a fuzileiros navais, Comando de Operações Táticas (elite da Polícia Federal), e Interpol. Falta ouvirmos das diversas e mesmo das diluídas correntes de oposição se elas realmente engolem os clichês e se realmente confiam cegamente nas eleições. Você leitor ou leitora, confia? Ou não confia?

Cerca de duzentas instituições, incluindo o Ministério Público de São Paulo, reuniram-se num “Pacto pela democracia”, e já entregaram ao STF um manifesto em defesa do processo eleitoral. Enquanto isso, entre nossos partidos políticos, alguém aí falou em mobilização nacional em defesa da democracia? Se falou, ainda não deu para ouvir.

Augusto Licks é jornalista e músico

Artigo publicado originalmente por Milton Jung em https://miltonjung.com.br/2022/05/12/plebiscito-em-outubro-acontecera/

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A Carroça e os Cavalos

WhatsApp avaliando as fake news. Musk comprando o Twitter. Movimentos como esses geram curiosidade, dúvidas e reacendem preocupações, especialmente em ano eleitoral.

Vivemos uma vida cada vez mais virtualizada. É a realidade, e as pessoas se adaptam, fascinam-se até. Entendo bem isso, pois em minhas atividades muito lidei com novas tecnologias que foram surgindo ao longo dos tempos. É incontestável a utilidade da informática e da telefonia móvel nos tempos atuais, pois proporcionam ao mundo uma quantidade imensa de recursos para a realização de tarefas que era impensável no passado.

Um grande exemplo disso foi com a pandemia, e como a população do planeta conseguiu organizar-se em relação à ameaça sanitária. Imaginem o que teria sido essa calamidade, digamos, nos anos 80 quando não existia internet comercial. Muito mais gente teria morrido e sem saber a causa.

De resto, é longa a lista de benefícios e utilidades atualmente à disposição para que a população produza, consuma, crie, e se comunique, em quantidade incalculavelmente maior do que na era pré-1995. Falo em quantidade, não necessariamente qualidade. Em todo planeta, temos nesses ramos, hoje, uma constelação de ricas empresas a atender as demandas e a proporcionar empregos.

Ainda assim, com todos os benefícios, a tecnologia da informação (TI) preocupa, para dizer o mínimo, pois carrega riscos, perigos e até ameaças. É porque, diferentemente de outras tecnologias, TI não se resume a oferecer ferramentas úteis.

Como há umas três décadas já alertava o físico escritor Fritjof Capra é uma tecnologia que facilitou a realização de tarefas existentes mas foi acrescentando inúmeras outras tarefas que não existiam. Esse processo incessante e a proporção a que chegou faz com que de certa forma a TI, bem mais do que oferecer utilidade à sociedade, acabe se apoderando da própria sociedade ao impor dependências em quem a usa. Sendo assim, é no mínimo preocupante que o constante e frenético desenvolvimento da TI não venha acompanhado de recursos que a alinhem com o aperfeiçoamento social. Sem freios, o resultado é que a tecnologia acabe usando usuários(as) quando deveria ser apenas o contrário.

Claro que alguns conseguem usá-la seguramente — quando ainda conseguem fazer alguma coisa a mais na vida —, mas mesmo estes vivem sendo atrapalhados aqui e ali, seja por telemarketing, call center, spam, hoaxes, fakes, cookies, atualizações, instalação de aplicativos desnecessários, e toda sorte de subprodutos que lhes obrigam a perder tempo com práticas entediantes de configurar antivírus, firewall, VPN, habilitar, bloquear, filtrar, e, mesmo, cancelar, num poço sem fundo de abordagens indesejadas que acontecem.

É interessante observar que o próprio setor empresarial já produz iniciativas de controle, como o site naomeperturbe.com.br da FEBRABAN em que mais de 5 milhões de usuários já se cadastraram para proibir que empresas lhes telefonem oferecendo crédito consignado. Me pergunto se não seria mais simples criar uma lei punindo de vez essa gente inoportuna. Como política de Estado, porém, por enquanto, somente a não-democrática China avança num projeto de controle de algoritmos, sacrificando interesses econômicos de suas próprias Big Techs ao facilitar que o usuário evite compras compulsivas que vivem pipocando em suas telas. Resta saber o que mais o regime chinês pretende.

Sei de pessoas que optam por cortar esses males pela raiz: não atendem mais telefone (pois estão convencidas de que do outro lado estará uma gravação, obviamente não solicitada), não lêem mais textos SMS (perda de tempo catar algum que não seja indesejado), deixam de seguir grupos e gente online, ao constatar a impossibilidade de a todos “marcar”, “dar like“, subscrever canal, e ainda evitar que uns e outras se magoem por algum daqueles respectivos taps não lhe terem sido dados. A coisa fica ainda mais preocupante com golpes e clonagens que já são rotineiros.

Ao longo dos tempos, o desenvolvimento de tecnologia de forma geral esteve a serviço de tornar melhor a qualidade de vida da civilização. Mas até para isso parecem existir ciclos, representáveis em gráficos. Numa analogia, ainda que imperfeita, a produção de conhecimento e técnicas pode ser vista como o esforço de cavalos a puxar uma carroça carregada numa subida sempre íngreme — formando uma linha gráfica ascendente. Nessa imagem, a sensação contemporânea é de que tal percurso chega a um cume de altitude, e depois disso surge um “outro lado da moeda”: uma descida — linha gráfica descendente —, em que a força da gravidade faz o maior peso da carroça acelerar descontroladamente, adquirindo autonomia errática e puxando consigo os pobres cavalos a ela amarrados.

Como os cavalos na subida, o ser humano empenhou esforço, almejando que a chegada a algum cume lhe traria descanso e zonas de conforto. Só que não! Veio a descida e nela somos tragados a despender esforço que antes esperávamos economizar, para nos segurar em relação à essa inversão de forças.

Diz-se que estamos apenas no início, tem ainda “internet das coisas”, “realidade aumentada”, “metaverso”, deep web, dark web, etc. Algoritmos podem até ser obra de um humano (ou não), mas são os humanos como um todo que usufruem de ou sofrem seus efeitos.

Falta a esse uso tecnológico desenfreado algum compromisso com princípios universais que a civilização produziu após séculos e séculos de conflitos e erros que nos possibilitaram chegar a acertos. Pelo contrário, a voracidade da TI é por controle, é por mapear os passos e hábitos dos cidadãos, possibilitando que de uma ou outra forma sejam manipulados. É aquela ideia antiga profetizada no livro “1984” de George Orwell, com o Big Brother, depois alertada no filme “Inimigo do Estado”, e em anos mais recentes delatada por Edward Snowden, ex-funcionário da Agência Nacional de Segurança dos EUA. Ficção tornando-se realidade.

Os mais jovens não devem saber, mas no início a internet era instrumento para estudos, acadêmicos ou não, e tinha regras para a discussão de ideias, a netiquette dos newsgroups originais. Em contraste, hoje, praticamente não existem regras que impeçam violências morais e crimes de calúnia, injúria e difamação. Chega a ser comovente o esforço de nossas instituições jurídicas para coibir tais males, mas é como tapar sol com peneira. Se responsabilizar indivíduos é difícil, como, por exemplo, agir com uma comunidade digital inteira se praticar esses crimes ? Falta obviamente uma regulamentação, que seja eficaz e prime por identificação da origem de notícias e declarações.

Contra regulamentação de plataformas digitais usa-se a alegação de que iria ferir a liberdade de expressão. Mas não seria nesse caso a liberdade de raposas num galinheiro? Numa sociedade livre, por contraditório que soe, liberdade tem limites, e estes limites são facilmente definíveis a partir da experiência acumulada de países democráticos. Liberdade sem limites é liberdade apenas para os mais fortes. Lei da selva!

Ouvi também um argumento de que as plataformas digitais democratizaram a informação em relação a grandes empresas de comunicação que antes a monopolizavam. Não discordo, mas não vejo porque ambas não possam conviver, desde que resguardadas as respectivas credenciais.

Em empresas de comunicação trabalham profissionais que se prepararam para o exercício de uma função essencial que é buscar e relatar fatos de interesse público. Nada impede que alguém faça o mesmo em plataformas digitais, e muitos fazem, mas é preciso credenciar isso, distinguir de práticas pessoais ou corporativas que não têm o mesmo compromisso ético de buscar a verdade de forma isenta (missão do jornalismo), mesmo que isso seja difícil e por vieses editoriais que ocorram.

É preciso, repito, identificar, submeter as origens de informação a algum mecanismo de controle que funcione como uma espécie de selo, para que o leitor ao menos tenha uma referência imediata sobre a origem do que está lendo, que lhe permita ter alguma noção de quão confiável é. Um timbre de determinada cor já ajudaria a atestar o grau de confiabilidade de uma postagem. Claro que não é tarefa fácil, exige engenharia gigantesca, mas enquanto alguma medida não acontecer, os anonimatos, fishing e fakes seguirão manipulando as pessoas mais ingênuas, que acabam adaptando-se a serem manipuladas, e seguem sendo reféns.

Umberto Eco afirmou que as redes sociais deram voz aos imbecis. Só que nem tão imbecis são os que tiram proveito desse estado de coisas. Seus reféns é que são. Do jeito que está, com o apelo irresistível da tecnologia e a força avassaladora das plataformas digitais temos um generalizado enfraquecimento humanístico, a serviço de remeter pessoas a apenas raciocinar e não refletir, a xingar em vez de argumentar, a usar instinto em vez de razão, a aceitar crendices em vez de conhecimento, enfim, a todo um senso comum tecnologicamente aparelhado com pseudo-valores retrógrados.

Enquanto alguma solução não for construída — leia-se: o congresso elaborar e aprovar uma lei eficaz para coibir os atuais abusos — a sociedade seguirá predominantemente viciada, quimicamente dependente dessa droga legalizada, de seus produtos, sub-produtos, e derivativos. Clínicas de reabilitação existem, mas talvez devêssemos reformular o conceito oficial do que é droga em nosso país, considerando apenas a saúde pública, sem moralismos e hipocrisias que só beneficiam interesses de alguns.

Augusto Licks é jornalista e músico

Artigo publicado originalmente por Milton Jung em https://miltonjung.com.br/2022/04/29/o-efeito-da-carroca-sobre-os-cavalos-no-avanco-da-tecnologia-da-informacao/

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Faltou combinar com os russos?

A expressão do título acima popularizou-se a partir de um comentário atribuído ao craque Garrincha, na Copa do Mundo de 1958, ao ouvir preleção do técnico Vicente Feola antes do jogo contra a seleção da Rússia. Virou lenda, por falta de prova material de que tenha realmente acontecido. A expressão pegou, sendo volta e meia empregada em situações cotidianas. Não poderia também ser aplicada à guerra da Ucrânia?

Senão, vejamos:

Um país invade militarmente outro país, ferindo soberania e também o direito internacional, uma agressão sem dúvidas, a causar mortes e horrores típicos de uma guerra. É novidade? Não, não é, já vimos esse “filme” antes. Poderia ter sido evitado? Sim, poderia. Como? Bem, aí é necessário discernimento para entender-se as causas, filtrando-se de um esforço assim uma outra guerra, a das narrativas.

A cobertura jornalística ocidental naturalmente ressoa com o viés de narrativas ocidentais, dedicando atenção modesta às narrativas orientais. Não há novidade aí. Isso, porém, não nos impede de levantar dúvidas, na busca de algo mais próximo da verdade dos fatos.

Seria Vladimir Putin igual a Osama Bin Laden e Saddam Hussein, “párias” que levaram os Estados Unidos a invadirem Afeganistão e Iraque? Ao menos é o que parecem pensar governos e mídia dos EUA e dos países da Europa ocidental. A demonização de um líder inimigo é um passo dentro de uma estratégia para obtenção de apoio popular para medidas extremas.

Bin Laden teria sido um terrorista treinado por norte-americanos mas que voltou-se como bumerangue nos atentados de 11 de setembro de 2001. Hussein não foi nada inteligente ao invadir o Kuwait, provavelmente mal orientado ao acreditar que pudesse ter alguma chance contra a inevitável represália dos EUA. Não, nenhum dos dois se encaixa no perfil do presidente da Rússia, e não há comparação possível com os dois países do Oriente Médio. Aqui, necessariamente, é outra história.

Por que, afinal, iria uma superpotência dar-se ao trabalho e ao desgaste público de atacar um país vizinho com o qual inclusive compartilha laços culturais e comerciais? Assim do nada, “out of the blue”, por pura insanidade de seu líder? Ah não, aí tem mais coisa!

Não há como ser simples nesse assunto. Para entender-se o que realmente causou a invasão russa é preciso no mínimo familiarizar-se com um contexto que é complexo, pois somam-se questões pontuais do país agredido com o grande jogo da geopolítica internacional.

Recomendo muito estudo a quem queira emitir uma opinião com alguma segurança. Eu aqui me limito a levantar dúvidas e colocar alguns elementos que tenho apurado nos meus estudos.

Vamos por partes.

O mapa da Ucrânia foi sendo redesenhado ao longo da história por conta da 1ª e 2ª guerras mundiais e da inclusão no bloco soviético, e ainda antes em questões com nações vizinhas, que incluem a Polônia, outro país que também foi objeto de disputas territoriais e remapeamentos. Com alguma semelhança à antiga Iugoslávia, também a Ucrânia vivencia diferenças étnicas, gerando situações internas conflituosas. Some-se a isso o retrospecto de no passado o país ter enfrentado tanto os nazistas como os soviéticos, e temos aí alguma polarização. O lado oriental manteve-se mais identificado com a Rússia, enquanto o lado ocidental desenvolveu rejeição à Rússia e um anseio de associar-se ao ocidente europeu.

Percebe-se aí o divisionismo interno do país, embora isso não fosse impeditivo para que a Ucrânia se integrasse à União Europeia, que acolheria de bom grado uma nação a mais a compensar em parte o Brexit da saída da Grã-Bretanha. O problema não está aí.

O problema está na geopolítica, mais exatamente no “balance of power” que trata do equilíbrio armamentista entre grandes potências que se originou após a 2ª guerra mundial com a vitória aliada sobre o eixo Alemanha-Itália-Japão. Ali, a União Soviética separou-se dos aliados do mundo capitalista, e houve um realinhamento recíproco como necessidade para se evitar um conflito nuclear, que poderia extinguir a raça humana em nosso planeta.

Naquele pós-guerra surgiu a “Guerra Fria” em que os dois blocos dominantes tratavam de se manter informados sobre o lado adversário através de espionagem. Tínhamos o Tratado de Varsóvia a unificar os interesses dos países militarmente alinhados com a Rússia, e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) a fazer o mesmo com os países militarmente alinhados aos Estados Unidos.

Com a dissolução da União Soviética em 1991, como dominó desfez-se o Tratado de Varsóvia, mas não se desfez a OTAN. O fato de o regime socialista-leninista ter caído nos países do leste europeu não mudou a necessidade de interação econômica entre as vizinhanças. A criação da União Europeia não acolheu todos aqueles países. A Rússia, ainda poderosa, tratou de realinhá-los na cooperação comercial e cultural. No plano geopolítico, houve em 1990 o acordo pelo qual a Alemanha reunificada passaria a integrar a OTAN.

Em 2017, a universidade George Washington publicou documentos secretos recém-liberados por Estados Unidos, Rússia, Alemanha, França e Inglaterra. Revelavam que o secretário de estado dos EUA, James Baker, teria assegurado ao presidente russo Mikhail Gorbatchov que a OTAN não iria se expandir “uma polegada sequer” em direção ao leste europeu. Era a condição para o ingresso germânico na organização. No entanto, os historiadores debatem sobre isso, por não encontrarem registros impressos daquela garantia, apenas evidências de ter sido expressa verbalmente e, nesse caso, não cumprida. A partir de 1998, Polônia, República Checa, e Hungria passaram a fazer parte da OTAN e foram gradativamente seguidos por outros países do leste europeu. Os russos se sentiram traídos, reclamaram, mas não passou muito disso.

Teria o acordo de 1990 sido uma lenda, tal qual a frase atribuída a Garrincha?

Mais recentemente, a partir da segunda década do século 21, ao anseio do lado ocidental da Ucrânia em integrar-se à UE somou-se um segundo interesse, o de integrar-se também à OTAN. O documentário “Ukraine Burning” conduzido em entrevistas feitas pelo diretor norte-americano Oliver Stone oferece um pano de fundo diferente de típicas narrativas ocidentais. Ali são entrevistados o próprio Vladimir Putin e Viktor Yanukovich, o presidente deposto da Ucrânia no golpe de estado de 2014.

As imagens e gravações telefônicas no filme sugerem uma importante influência norte-americana no país por ocasião dos protestos na praça Maidan, na capital Kiev. Na época, Biden era vice-presidente de Barack Obama. Yanukovich era acusado de corrupção e de ir contra a aproximação com a União Europeia. Os protestos, pacíficos no começo, acabaram sendo sabotados por provocações culminando num massacre com muitas mortes, aparentemente perpetrado por “snipers”, atiradores de elite em posições estratégicas, visíveis em imagens do documentário. Espalhou-se que a culpa pelas mortes fora das forças locais de segurança, e o decorrente clamor popular impulsionou grupos extremistas a derrubar o governo, não houve sequer impeachment. Yanukovich só não foi assassinado porque fugiu de helicóptero, enquanto os extremistas disparavam contra carros da comitiva presidencial, imaginando que estivesse em um deles.

O exilado presidente e Putin alegam que a partir de então o novo governo ucraniano manteve negociações com a Rússia e assinou vários acordos, mas simplesmente não os cumpriu. Até aí, tolerável para os russos. Mas quando ficou clara a intenção do atual presidente ucraniano Volodimir Zelenski em associar-se militarmente à OTAN, acabou a paciência. Ucrânia é porta de entrada ao território russo, como então aceitar que se tornasse um inimigo com armas nucleares? Em 1961, os russos enviaram mísseis a serem instalados em Cuba, bem próxima aos EUA. Os norte-americanos aceitaram? Claro que não, e ali instaurou-se uma grave crise que poderia deflagrar uma guerra atômica que felizmente foi evitada pela diplomacia.

Essas minhas impressões não deixam de ser ainda superficiais, pois existem outros aspectos pontuais e importantes, como a própria questão da Crimeia. Algumas análises sugerem que o atual presidente dos EUA têm muita responsabilidade por as coisas terem chegado ao atual ponto. Biden já tinha contra si a contrariedade de muitos com a forma como as tropas norte-americanas deixaram o Afeganistão, humilhante para alguns. Mexer em vespeiro para ter a Ucrânia na OTAN foi um desafio que previsivelmente a Rússia não deixaria passar batido, e não deixou. Biden, empossado presidente, talvez tenha pecado também por auto-suficiência: teve a chance de formar aliança comercial com a poderosa Rússia ou com a rica China e não optou por nenhuma. Agora tem ambas contra si: a segunda maior potência armada, aliada à segunda maior potência econômica.

Fica fácil portanto perceber que a Ucrânia tornou-se não mais apenas uma questão localizada mas também uma oportunidade útil para a Rússia, que apoiada pela China se propõe a dar cartas geopoliticamente, aproveitando-se do que identifica como queda de influência do ocidente.

Putin sabia que não poderia ser retaliado militarmente, pois a Ucrânia ainda não faz parte da OTAN. Biden também sabia e pouco fez para convencer Putin a mudar de ideia. Agora talvez esteja vivendo o dilema entre o que decidir: agir racionalmente com risco de perder ainda mais prestígio político-eleitoral no seu país, ou então precipitar-se numa aventura nuclear para se antecipar a um inconformado Donald Trump que possa conclamar seu povo a “fazer a América forte novamente”.

Em geopolítica, não existem “bons”, nem princípios humanitários, e hoje nem ideologias contam mais. Tudo gira em torno de poder e riqueza. As mortes e os horrores de guerra, que acontecem diariamente, são tratados como mero dano colateral. Os próximos dias, críticos, irão dizer qual será o destino dos países envolvidos e, a rigor, de todos nós no planeta.

Diria que existem umas 95% de chances de uma solução diplomática, em que os EUA aceitem a desmilitarização da Ucrânia e as tropas russas se retirem. Putin não teria como recusar isso, mesmo que a contragosto não obtenha quaisquer garantias de que a OTAN (leia-se EUA) não continuará se expandindo. Os 5% ficariam por conta de três possibilidades, sendo as duas primeiras para hipotética vantagem norte-americana:

  1. o assassinato de Putin;
  2. os EUA seduzirem a China com uma proposta irrecusável para uma aliança econômica, desfazendo o recente pacto sino-russo;
  3. acontecer o infortúnio de alguém disparar míssil contra quem não deve, até por provocação forjada, detonando guerra mundial nuclear. “Shit happens …”, diz um ditado estadunidense. Obviamente nessa terceira hipótese não haveria vantagem para ninguém.

O resto é guerra de narrativas. Sanções comerciais são fortes mas podem não ser suficientes nessa queda-de-braço com uma super-potência que se alinhou a outra, muito rica. Assim, enquanto continua morrendo gente na Ucrânia, a lógica parece sugerir que, em vez de insistir “peitando” e tentando desacreditar Putin, os EUA talvez devessem combinar logo alguma coisa com os russos, para evitar que depois estejamos todos lamentando que “faltou”.

Augusto Licks é jornalista e músico

Artigo publicado originalmente por Milton Jung em https://miltonjung.com.br/2022/03/03/faltou-combinar-com-os-russos/

Foto principal: primeira reunião entre Rússia e Ucraniana desde o início da guerra

Não encontrarei mais Paulo José

Tive inveja de Paulo José contracenando com Dina Sfat, sua mulher, em Macunaíma. Acabei me afeiçoando ao grande ator, gaúcho de Lavras do Sul, em curiosos encontros esporádicos no supermercado Zaffari da rua Marechal Floriano, no centro de Porto Alegre, o qual também frequento.

Ele escapava para a capital gaúcha quando permitia alguma folga das gravações das novelas da Globo. Simples e discreto, Paulo José ia fazer as suas comprinhas trajando bermudas, camiseta e um tênis surrado. Conseguia passar desapercebido na maioria das vezes. Porém, mesmo com as dificuldades do Parkinson que avançava, era gentil e paciente com as raras pessoas que o identificavam.

Trocávamos algumas palavras sobre clima, futebol, estas bobagens. Às vezes, entre os corredores de compras, a conversa avançava um pouco, nunca tocando em coisas profissionais Eu tinha o maior cuidado em não expô-lo à tietagem. Não o encontrarei mais no supermercado. Ele nos deixou, nesta quarta-feira, aos 84 anos de idade.

Guardarei na retina a sua última imagem. No final da ladeirinha, Paulo José olhou para trás e sorriu para mim naquele seu jeito triste de sorrir. Como que agradeceu pela cumplicidade em guardar a privacidade de um dos maiores atores do Brasil quando ele apenas tratava de fazer as suas compras no supermercado.

Por Afonso Licks
Jornalista
Foto principal: arquivo pessoal de Afonso Licks

Jornal para pet

“Temos jornal pra pet”, anuncia o destacado cartaz afixado na banca de revistas do centro de Porto Alegre. Tá certo que os pets proporcionam um mercado crescente, ainda mais nestes tempos de pandemia. O que me surpreende é a aposta na mídia impressa que parece viver os seus estertores. Parei para ver.

– Seu João, poderia me mostrar o Jornal para pets?

– É esse pacotinho aí, no chão – disse o dono da banca de revistas que frequento desde quando trabalhava ali perto, espichando o braço para indicar com a caneta a pilha de saquinhos de plástico contendo um quilo, menos de dez jornais novinhos que nunca foram lidos, ao preço de R$ 10,00. Jornais que evidentemente saíram direto da boca da rotativa para uma função menos nobre do que a de informar os humanos. Jornalões da capital, um título em cada fardinho.

Fiquei com cara de idiota ao entender o engano em que me metera. Não passei recibo para seu João e saí sem responder quando ele indagou se eu tinha cachorrinho ou gatinho.

Com curiosidade, fui em busca dos números recentes sobre a circulação dos jornais. Fiquei mais angustiado com os dados do Instituto Verificador de Comunicação – IVC que há pouco foram informados na internet. Os números são assustadores para a mídia que mais emprega profissionais. Como em todo o mundo, a venda dos jornais impressos brasileiros anda à míngua. A velocidade de queda da circulação até pisou um pouco no freio a partir de 2020. Nos cinco primeiros meses deste ano, registrou 12,2% de redução. Mas, se for considerado o período mais amplo desde 2016, a queda média foi de 27,1%, diz o IVC.

O influente O Globo, no qual atuei como repórter, despencou de 156,3 mil exemplares diários em 2016, para 72,6 mil exemplares em maio último. Nesse período, o Estadão, onde fui freelancer, caiu de 126,9 mil para 75 mil exemplares. O gaúcho Zero Hora que se perfila entre os cinco grandes jornais do País e que teve circulação de 122,3 mil exemplares em 2016, agora registrou a tiragem de 49,7 mil exemplares.

A retração também afeta o concorrente, o Correio do Povo, onde eu precisava estar no iniciozinho da tarde para, entre uma multidão de redatores, poder ocupar uma rara máquina de escrever vaga. Sobrava-me quase sempre a máquina do colega que habitualmente pouco antes das 17 horas tinha a sua presença anunciada em alerta dado diretamente para mim pelo Antônio Hohlfeldt. Sentado de frente para a porta da entrada da redação, Antônio bradava: “Te manda, guri, porque o Mario Quintana chegou.” O Correinho, que já foi Correião, reduziu a sua circulação de 84 mil exemplares em 2016, para informados 60 mil exemplares – somados impresso e digital – em 2021. O ABC Domingo, de Novo Hamburgo, no qual escrevi coluna, tirava 44,9 mil exemplares em 2016. Atualmente tira 30 mil, chegando a 58 mil com o digital.

A mídia digital avança auspiciosos 5,5%, informa também o IVC. Eu torço por uma reação mágica do jornal impresso. Ainda preciso, nas minhas manhãs, sentir o cheirinho da tinta no papel que folheio na mesa da padaria, competindo com os aromas do café e do pão quentinho. No entanto, se depender da estratégia de distribuição do “Jornal pra pet”, sei que o meu prazer matinal está ainda mais ameaçado.
(fontes: IVC, Observatório da Imprensa, Poder360)

Publicado originalmente no Jornal O JOR

Por Afonso Licks
Jornalista
Foto principal: arquivo pessoal de Afonso Licks

Inquérito cósmico

Como se instalou na minha mente o vírus da dicotomia entre o Bem e o Mal?

Bom…, lá pelos anos 50 eu estava devidamente curtido na magia ritual religiosa, como um pepino de conserva no seu vinagre. Usava escapulário, me persignava com água benta, entrava na fila da beijação para depositar um ósculo na estátua de gesso do divino mártir… Colecionava santinho, estudava compenetrado o catecismo, rezava o terço com um rosário que me deram no aniversário, sabia de cor e salteado as rezas, inclusive o Credo, orava antes de dormir…  E lá em casa em noites de temporal a mãe abria a janela e prendia fogo em ramos de palma benta, que ela sempre tinha para essas ocasiões. Era uma cena etrusca, o fogo e a fumaça das palmas combatendo o vendaval, que queria arrancar e levar o chalé, com nós dentro…

Veio a primeira comunhão, e eu fiquei em segunda época, tive que fazer de novo. É que eu fui sem fatiota, e o padre A. me reprovou e disse que o sacramento não valia, seria só de faz de conta. E se eu quisesse ir pro céu, teria de repetir devidamente trajado. Não saiu barato o trabalho do alfaiate, mas justifiquei lá em casa, me amparando nas teses do vigário: o Bem deve vestir fatiota… Assim foi, e a primeira comunhão foi a culminação de semanas de intensa doutrinação, e como eu repeti, recebi uma dose dupla de maniqueísmo.

Historicamente se atribui a uma certa região da antiga Pérsia (hoje Iraque) a famosa dicotomia, e ao heresiarca Manes. Mas o padre A. não ficava pra trás: nós estávamos com Deus, porém o Maligno andava por toda parte, inclusive em certos lugares da nossa cidade. Ele citou vários nomes, deles eu gravei apenas um, o tal café Guanabara, que eu nem desconfiava onde era, mas pra mim Satanás passou a andar por lá.

– A maçonaria é coisa do diabo, e na umbanda (eu não conhecia essas palavras) ele comparece em pessoa -, o padre dizia sem rodeios. E ainda jogava outros grupos no fogo do inferno, mas só estes dois ganharam relevo para mim.

Eu já estava na escola, descobria os livros e as palavras começavam a fazer minha cabeça. Por outro lado, também já queria definir meu futuro: quando for grande, vou ser jogador de futebol.

Aí apareceu o tenente S., pra recrutar quem quisesse fazer um teste no Estádio dos Taquarais, os melhores passariam a integrar o selecionado de futebol mirim da cidade. Achei tudo muito lógico, meus planos se tornavam realidade, ali começava minha carreira futebolística, me inscrevi no teste.

No dia combinado me encontrei com dois guris da vizinhança que também estavam inscritos, e saímos correndo em fila indiana, com eles na frente, que sabiam o caminho pro estádio. Subimos a rua um bom pedaço, dobramos pra direita e toca em frente. Eu ia contente e distraído, lendo os nomes das placas e tabuletas que iam aparecendo, me deixando guiar pelos outros.

De repente me deu um frio, li Café Guanabara num letreiro do outro lado da rua… Eu era muito devoto, e as palavras do padre A. tinham se encravado na minha mente… Fiquei aliviado quando nos afastamos daquela esquina, dobramos à direita e pouco depois estávamos entrando no campo de futebol.

Havia um grande número de guris se esquentando, pulando, chutando o ar. Os testes eram individuais, e começaram ali pelas nove horas. Fui dos primeiros, e depois de dez minutos avaliando minha habilidade no domínio da redonda sobre o gramado me dispensaram, por ser pouco apto para a prática do futebol. Foi um golpe duro nos meus planos e me deixou triste. Mas não por muito tempo.

Os testes e a seleção continuavam e eu estava sobrando ali, sem ter o que fazer. Foi quando percebi os altos taquarais, e fui para lá. Eles cresciam só em uma ala do campo, por onde passava uma sanga, coisa que descobri fascinado e me fez esquecer o futebol e lembrar as histórias de Taquara-Póca, do F. Marins. Explorei toda a extensão daquela parte do estádio, encontrei muitos pés de gengibre selvagem, reconheci pelo cheiro. E numa espécie de gargalo da sanga coloquei uma tábua que havia encontrado e passei para o outro lado. Ali só se viam muros e paredes traseiras de casas, mas encontrei um vão que permitia a passagem, me meti nele e fui sair na rua, ao lado da fábrica de bebidas Wilco, que fazia a Paquetá, minha bebida preferida. E fui pra casa, me orientando pela vista do morro São João.

Algum tempo depois me deu vontade de voltar por aqueles lados, e refazer a aventura em sentido inverso. Ou seja, me enfiar pelo espaço vazio entre o muro e a fábrica Wilco, atravessar a sanga e explorar o Estádio dos Taquarais, a meu bel-prazer. Andei pelas ruas distraído, e quando vi estava na frente da Igreja Episcopal, que eu não conhecia, mas me fez lembrar das imprecações do padre A. Aí me veio uma curiosidade mórbida, desisti da sanga e dos taquarais e caminhei na direção do café Guanabara, esperando conhecer algo chocante. Não tinha nada de especial lá, e já arrependido, resolvi ir até a casa do tio W., que ficava perto da cancha de carreiras. Se chegava lá caminhando ao longo do muro do estádio, mas atravessei a rua para andar na calçada oposta, que parecia melhor. Tinha dado uns poucos passos, quando ouvi sons estranhos, achei que vinham do campo de futebol. Não era, nem da esquina, os sons só podiam vir dali mesmo.

Eu estava parado em frente de uma casinha branca de alvenaria, com uma porta central ladeada por duas janelas, tudo hermeticamente fechado, e escutava um canto abafado de vozes no meio do batuque de tambores. Aí notei a plaquinha na porta: Centro de Umbanda Kabecilê. No mesmo momento o som subitamente cresceu, talvez por terem aberto uma porta interior que abafava o ritual que estava rolando lá nos fundos. Isso despertou um pânico irracional em mim, e me afastei correndo dali, fugindo do diabo como o diabo foge da cruz…

Naquele meu primeiro contato com a umbanda houve esse toque demoníaco, graças à ensinança do venerando padre A. Ao longo dos anos isso mudou, e descobri na religiosidade afro-brasileira uma fonte de inspiração, também para a criação musical. Especialmente quando passei um tempo na Bahia, e conheci pessoas como J. Deikin. Quanto à maçonaria, fica para outra sessão.

Publicado no jornal O Progresso – Montenegro RS

Por José Rogério Licks
Foto: arquivo pessoal de José Rogério Licks

Nosso bestiário

O armazém vendia gaiolas, mas boa parte do estoque era requisitada pelo R., que pendurava nas paredes canários, pintassilgos, coleirinhos, lembro até um cardeal. Pelo crescente interesse das gatas, ele passou a hospedar os passarinhos no alto do corredor que ia pra rua, com roldanas e cordinhas, que permitiam subir e descer as gaiolas. Quando o pai ganhou o papagaio, o primeiro que fez foi tirá-lo da camisa de força de arame em que veio e acomodá-lo na maior e melhor gaiola que tinha na venda. Foi como sair da Cracolândia pra ir morar numa mansão de vários milhões, mas a ave ficou indiferente, só observava tudo com um olhar lateral, de uma obstinada persistência, como o do velho Moriel. O seu Moriel aparecia na venda pra bater papo, como muita gente fazia. Mas ele não falava, só observava tudo com aquela fixidez singular do seu olhar de lado. Até no caminhar o papagaio tinha um jeito parecido, e veio a ideia de batizar ele de “Seu Moriel”. Mas ainda estávamos ressabiados com a história do meu cãozinho, que ganhei recém-nascido e pus o nome de Rex. Eu não  me desgrudava dele, que logo começou a correr e latir de um lado para o outro, e eu atrás gritando Rex, Rex… Acontece que no alto da vitrine do nosso novo vizinho tinha escrito bem grande: “Foto Rex”…  O homem veio indignado cobrar do pai, e fui intimado a mudar o nome do nosso melhor amiguinho do homem.

Alguém me disse que um papagaio livre não fala, nem canta, nem assobia, prisioneiro é que ele aprende, quando perde a consciência de bicho, e quer imitar os humanos. O pai quis ensinar o psitacídeo a falar, mas não houve jeito e logo desistiu. Aí eu assumi a tarefa. Eu tinha decorado “nous s’allame, vous s’allate” ouvindo o R. estudar pra prova de francês no ginásio São J.B., e repeti dois dias seguidos essa conjugação comestível diante do papagaio. Mas o pássaro só me observava com o olhar do seu Moriel, e quando eu terminava ia ciscar os seus pezinhos ou o poleiro de pau. Francês é difícil, pensei. E mudei, a lição passou a ser: “Eurico pé de chulé… Eurico pé de chulé…”, Eurico era um dos trabalhadores na construção da casa nova. Mas meu esforço não produziu um grasnido do meu pupilo. Insisti com outras, e por fim ainda tentei um “puta que pariu“, mas depois joguei a toalha. Nisso me veio a eureca: – Ora, este papagaio é mudo, ou surdo, ou os dois. Por isso ele torce o pescoço e fica me olhando assim, sem entender o que eu quero. E me desinteressei dele. Alguns dias depois eu estava pincelando grude nas folhas de papel, que depois ia dobrando até dar a forma de saquinhos, que se usavam na venda pra pesar arroz, feijão, açúcar, etc., quando três rajadas vindas da gaiola me fulminaram:

Rico qué café! Rico qué café! Rico qué café!

A la fresca! Este ser emplumado não é mudo. Mas talvez seja meio surdo… Ou meio burro, pensei. Foi assim que o nosso verde do divino ganhou um nome, que ele mesmo se deu. A cada tanto, Rico repetia ao léu seu refrão, de vez em quando também soltava um assobio, isso era tudo. Certa manhã o pai foi abrir a venda e encontrou o Rico comendo grãos de cereais caídos pelo chão. Uma guria tinha levado a comida e esqueceu de fechar a gaiola, ele saiu. Mas não quis fugir pra outro lado. Aí o pai devolveu a gaiola pra venda e o R. fez um poleiro no alto, onde o Rico passou a dormir a salvo das gatas, que viviam de olho nele. O resto do tempo ele ia onde queria, pé ante pé no chão, passeando pelas bordas das janelas ou escalando prateleiras. Voar neca, pra dormir ele galgava devagarinho uma prateleira, e ao atingir altura suficiente abria as asinhas num mini-voo até o poleiro.

Fiquei com uma pedra no sapato, quando o Foto Rex me proibiu de usar seu nome pro meu cachorrinho. Já estávamos acostumados, e eu não sabia outro nome. Aí o R. me salvou: – Batiza ele de „Collie“, que é o nome da raça, a mesma da Lassie. Rico e Collie se tornaram inseparáveis amigos. Ah, se houvesse foto daqueles passeios que os dois faziam juntos pela casa, em que Rico ia de carona no lombo do Collie… Mas por ali só o Foto Rex tinha câmera. E quantas vezes Collie arremeteu contra uma gata atrevida que queria abocanhar o Rico… Se supunha que as gatas estavam ali para pegar os ratos, que pelas noites infestavam o armazém. Mas pelas noites elas iam  namorar, na horta e pelos telhados. E é por isso que a população dos ratos só aumentava. E a dos gatos também. Quando o Chalé – nossa casa nova –  ficou pronto, o quarto  do R. era o mais especial, em todos os detalhes. E ali estava o armário mais nobre da nossa casa. E num nicho no alto ele guardava um livro de sonetos de Shakespeare, um de Schopenhauer, e um com os rubaiyat de Omar Khayyam. Pois certa manhã ele acordou com um quarteto de miados vindos do seu lugar sagrado, uma gata pariu ali seus rebentos… A gente dava de presente pros vizinhos, mas  a coisa não tinha fim, o jeito era levar os bichaninhos para as águas frias do rio Caí. Eram tempos cruéis…

A nossa cozinha era infestada de baratas, de todos os tipos e tamanhos, que durante o dia nunca apareciam. Mas quando eu voltava do curso noturno no Jacozinho e acendia a luz da cozinha,  sschoofff se ouvia por dois segundos, dos bichos se escondendo, por todo lado. Se o calor do verão era intenso, elas aprendiam a voar e se juntavam às nuvens de mosquitos, o jeito era bombear Flit por todo lado e esperar o efeito, no meio tempo nossos pais iam sentar na calçada e papear com os vizinhos, antes de dormir. Mas quando eu varava as noites estudando pro vestibular, não havia Detefon que espantasse os malditos, e a solução foi pegar na venda alguns ventiladores, posicioná-los em círculo e sentar no meio.

Meu maior terror era entrar na venda de noite, pra ler um livro tomando coca-cola e comendo um sanduíche, depois chocolate, sentado no cantinho que o pai sentava durante o dia pra ler, enquanto não vinha um freguês. Entrando pelos fundos, tinha de caminhar quase dois metros no escuro do corredor, até chegar no poste do telefone e acionar o interruptor da luz. Eu tinha lido que dente de rato é afiado como navalha, e morria de medo que aquela rataria – se ouvia uma roedeira infernal na escuridão – se jogasse pra cima de mim, numa noite daquelas. Mas enfim, chegava no poste, prendia a luz e de supetão os ratos paravam de roer. E ato contínuo, zás-trás, embarafustavam nos seus buracos. Aí eu respirava aliviado, e seguia pro meu cantinho. Bah…, nem pude falar das  galinhas, e dos galos de briga, e do meu jabuti… E da vaquinha Bonita, que a saúde pública obrigou a mãe a se desfazer, ela vendeu, levaram, mas dois dias depois Bonita estava na porta  da venda, querendo entrar…

Publicado no jornal O Progresso – Montenegro RS

Por José Rogério Licks
Foto: arquivo pessoal de José Rogério Licks

O senador e o schnapps

Apenas parlamentares podem entrar no plenário do Senado Federal durante as sessões. Há um estreito reservado lateral para a imprensa. Lá estava eu trabalhando como repórter. O senador Casildo Maldaner, ex-governador de Santa Catarina, me viu e foi logo chamando para que fosse até ele. Conhecendo as regras da casa, abanei de volta e fiquei no meu reservado. O senador, então, falou alto ao segurança para que liberasse a minha passagem. O rapaz resmungou e me conduziu pelo tapete azul que caracteriza as dependências do Senado em contraposição aos tapetes da Câmara dos Deputados, que são verdes.

Em plena agitada sessão de quinta-feira, bem no meio do plenário, sob as lentes da televisão e enquanto aconteciam os debates parlamentares, o senador me abraçou com a intimidade das conversas na calçada da Beira Mar Norte de Florianópolis, onde nos encontrávamos com frequência nas manhãs de sábado, ele em dedicada atividade física e eu mais caminhando para admirar o mar.


Senador Cailsdo Maldaner (Senado/divulgação)

Sempre falando alto, foi convocando os colegas senadores para virem até ele porque a história que iriam ouvir era maravilhosa. Eu era quem iria contar.

– Qual história que vou contar, senador?

– Aquela do teu pai Otto Licks com o pessoal da colônia, em Montenegro, em plena guerra, quando o governo proibia falar o alemão sob pena de prisão. É um registro histórico do que sofreram os descendentes de alemães no Sul do Brasil – dizia Casildo reunindo os colegas senadores e já rindo sozinho.

Constrangido por minha timidez, enfrentei o desafio de contar a história da qual o senador Casildo tanto gostava. Era o relato meio verdadeiro e meio folclore sobre a perseguição às pessoas de descendência alemã durante a II Guerra Mundial, impedidas de falar a única língua que conheciam. O caso do delegado de polícia que no fim de tarde de trabalho foi fiscalizar os colonos que se reuniam na venda do Otto Licks para conversar e beber cachaça com wacholder (zimbro). O delegado olhando para os colonos assustados na ponta do balcão de pedra e com seus copos na mão, interrogou ameaçadoramente o proprietário, querendo saber se ali alguém estava falando alemão pois o levaria preso?

Caprichei no sotaque de colono que aprendi ouvindo meus pais e, falando para o grupo de senadores que me cercava no plenário do Senado Federal, interpretei a resposta do Otto para o delegado:

– Non mesmo. Aqui ninguém fala alemon. Se alguém fala alemon eu digo: toma o teu schnapps e raus!

Foi uma gargalhada geral.

– Afonso, conta também a do Otto e os ovos de chumbo – pediu Casildo.

– A não, senador, o presidente da casa vai me expulsar. Fica para outra. Até logo, senhores senadores – e fui saindo rápido em direção dos colegas jornalistas que lá do reservado queriam saber que agitação era aquela.

Mais do que bom humor, Casildo gostava de histórias. Ele escreveu livros sob o título “Casildário”, com trocadilhos e situações engraçadas que recolheu durante os mandatos eletivos de vereador, deputado estadual e federal, governador e senador, sempre pelo MDB de Santa Catarina.
Casildo Maldaner, gaúcho de Carazinho, faleceu na segunda-feira (17/5), aos 79 anos, em Florianópolis.

Publicado no jornal O Progresso – Montenegro RS

Por Afonso Licks
Jornalista
Foto principal: arquivo pessoal de Afonso Licks

Mensagem de uma velha amiga

Trouxeste a chave? Penetra surdamente no reino das palavras…, ensinou o poeta da pedra no caminho.

Se você está sozinho quando está sozinho, você está em má companhia…, alertou o filósofo dos caminhos da liberdade.

As palavras são poderosas, mesmo quando vamos ficando velhos, e o espírito – empenhado em manter a forma no exercício de viver, como quem vem nadando há muito tempo e já vai cansando, mas sabe que não pode deixar de nadar, ainda que seja sem saber bem para onde – vai jogando as experiências, os acontecimentos da vida para o fundo dos sótãos e porões submergidos da consciência. E a vida que vivemos antes desaparece da superfície ensolarada e mutante, onde lutamos por permanecer à tona neste mundo. Em hebraico “teivá” significa ao mesmo tempo “arca” e “palavra”. A arca é para ficar à tona no dilúvio universal, e a palavra é para enfrentar o dilúvio pessoal, que o envelhecer traz consigo.

O nosso espirito não possui, como o Windows, um cesto de lixo, onde seja possível por vontade própria ou por descuido, apagar definitivamente algum fato da existência, como um arquivo que se fez inútil. Uma pessoa de corpo jovem está  concentrada em agir e desfrutar em face ao sol, e nem percebe que, ao mesmo tempo, já vai criando nichos sombrios na sua mente, que se converterão em dependências submersas, para onde se desliza pouco a pouco tudo o que vai fazendo de bem ou de mal. Então as palavras são como chaves que nos permitem abrir as portas destes espaços escuros e fluidos. E podemos levar alguém, que nos ouve e queira descer junto, mesmo sabendo que duas pessoas nunca vêm ou encontram a mesma coisa…

Proust chamou a atenção para o efeito que pode causar um simples cheiro, um aroma qualquer, que de repente, na velocidade do pensamento, pode nos transportar para um momento vivido na remota infância. Acho que muitos de nós já fizeram essa experiência. Esse voo também pode ser desencadeado por uma palavra, constatei.

Agora, imagina que fosses mudo de nascimento. Não poderias falar a palavra água, mas tudo bem, poderias ver a água, banhar as mãos, sentir o frio e o fluir entre os dedos, ouvir os sons produzidos… Poderias ler o Bateau Ivre e afundar nas águas do oceano, junto com os afogados pensativos, vogar no fluxo das marés… E ao ler ou ouvir alguém falar “água”, tudo se faria presente em tua consciência.

E se além disto fosses cego? Não saberias nunca o que é o azul do céu ou o tom esverdeado do mar. Não poderias ver nunca aquelas fugazes campânulas liquidas que as gotas da chuva formam, ao bater  na água lisa do rio. Assim mesmo, alguém poderia te descrever, te contar, e ao escutar as palavras e os sons, no fundo do teu espirito surgiria algo, que seria para ti a água.

Mas, se ainda por cima fosses surdo? Então o mundo seria feito de frio e calor, sensações nos dedos e na pele, aromas inalados, sabores na língua… Como funcionaria o espirito e a faculdade de pensar? Há  pessoas que existem assim, conhecer o universo delas não deve ser fácil.

Então, a partir deste exemplo simples, é fácil de ver que a palavra “água” ativa na consciência de cada pessoa um universo único, pessoal. No meu caso…

Mas deixa pra lá, afinal somos ricos, podemos ver, falar, escutar…

Quem conta uma história vivida, usa as palavras como chaves para abrir e mostrar o que esteve oculto tanto tempo. Mas cada vez que conta é um pouco diferente, pois as palavras são coisas escorregadias como peixes, imprevisíveis como substâncias químicas reagindo entre si.

E quem conta se escuta também. E faz a marcha para trás, o mergulho na região submersa onde sentimentos se acasalam com fantasias e se faz necessária uma mão firme para não perder o rumo e se diluir no auto-engano e na insignificância. Então, são duas as pessoas que escutam, sendo que a que não abre a boca está simultaneamente recontando em silêncio para si mesma, pois no fundo escutar é isto. Quem conta escuta, quem escuta conta e assim ao infinito, como no ato de respirar.

No princípio era a palavra, escreveu o autor do Livro da Revelação…

Pois veja o que me aconteceu, tive um amigo dileto que eu muito admirava, por suas interpretações dos mestres barrocos. Grilo quis permanecer ativo, mesmo depois que se alastrou a pandemia. Há muitos anos ele percorria as ruas e as igrejas do velho continente com seu instrumento, encantando as pessoas com sua arte.

Nossa amizade estava pontilhada de muitos encontros, em lugares e situações de todo o tipo. E numa tarde do último verão nos sentamos no pátio de  uma antiga catedral, onde a própria sombra que buscamos fugindo do calor parecia ancestral. Nos sentamos para falar de nossas vidas, como já tínhamos feito tantas vezes. Uma fonte borbulhava ali perto e por uns momentos me perdi nos minúsculos redemoinhos que surgiam e se desfaziam dando lugar a outros, na canção das águas do tempo, sempre em tons diferentes, sempre a mesma.

– Agora que o caminho ficou exíguo, me concentro em preparar minha partida – falei. Como Sócrates, sinto que já vivi tudo o que havia por viver. Fiz tudo o que havia por fazer.

Eu estava sendo sincera, não havia nada de frivolidade nas minhas palavras. Para minha surpresa, elas provocaram uma indignação que eu nunca havia visto em meu amigo. – O que é que houve? Foi o corona que fez tua alma de guerreira baixar tanto a cabeça? Grilo assumiu uma expressão inquisitória, encolhendo as sobrancelhas e argumentando longamente sobre o sentido da nossa existência. No final aquele homem austero falou, como que puxando-me a orelha: – Você não tem o direito de ir tão satisfeita para a sua sepultura, como se não houvesse visto nem ouvido nada. Tens ainda uma dívida a saldar, um trabalho a fazer. Os seres que te amam – um deles está falando contigo – gostariam de saber, como foi a tua passagem pela terra. Além disso, Confúcio deixou dito para sempre: quem viveu, deve contar…

Por uma estranha ironia e para minha tristeza, algumas semanas depois desse nosso encontro ele contraiu o coronavírus, e veio a falecer num hospital de Videlsheim. Sua esposa, que não domina a língua portuguesa, me enviou vários PDFs com seus escritos, satisfazendo um pedido dele. Começo a penetrar surdamente neles… É uma boa companhia, nesta longa quarentena.

Publicado no jornal O Progresso – Montenegro RS

Por José Rogério Licks
Foto: arquivo pessoal de José Rogério Licks